29 de janeiro de 2016
O VERÃO NA PRAIA
O menino e povoado
Portinari
Vinha fazendo um calor medonho em todo estado de São
Paulo, especialmente aqui, ao lado do rio Piracicaba.
Se peixes aqui existissem, estariam todos eles de
barbatanas para fora da água à espera de um vento mais fresco e irreverente já
que tanto a terra quanto a água estiveram quentes como miolo de pão quando o
forno apita.
De repente, sem avisos, sem predições, sem súplicas
ainda, o céu amarrou-se, nuvens baixas desceram rapidamente e uma chuva de
trovões, raios, barulhos veio lavando a cidade, desde lá em cima, do muro do
cemitério até a baixada do rio, que engoliu de fôlego, tudinho.
Ainda chove; temos agora um ar fresco, tão fresco que
se pode imaginar os pássaros loucos para retornar ao lar das copas, sacudir as
peninhas com a alegria dos bebês açoitando a água do banho.
Essa dualidade de calor e frescura lembrou-me o tempo
que íamos para a praia, pequenos ainda.
O carro ia lotado, de tranqueira útil e de criança de
muitas idades, até que meu pai, já na serra, ainda parando para comprar um
cacho de bananas ouro, adoçadas mais do que de açúcar.
Do tamanho de um homem anão, a penca farta e frágil
vinha mal acomodada dentre nossas pernas enfiadas nos buracos possíveis. Íamos
já comendo as bananinhas enquanto o primeiro cenário de mar surgia rápido dos
quadros das janelas do carro.
Depois, era a alegria do mar, o sal por sobre as
nossas peles de juventude, enfiado nos nossos cabelos ainda virgens e por tanto
tempo, virgens, uma cor de ouro como a bananinha, tão certo como ela, em sua
doçura, tingindo rapidamente nossos pelos tão novos, de modo que surgíamos em
poucos dias renascidos em pessoas negras, tribais, de dentes branquíssimos e
dorsos nus.
Tínhamos apenas duas coisas: o dia, que era longo, a
noite, que era negra, cúmplice.
Como na pintura de Portinari, O menino e o Povoado, estávamos ali, cabelos duros, aloirados, a fazer estrelas na areia sem nunca olhar para cima, sem tempo de olhar ou contemplar o que denominam a estrela de verdade. Éramos bichos de férias, mas bichos sem o sanguinolento desejo de caça.
Como na pintura de Portinari, O menino e o Povoado, estávamos ali, cabelos duros, aloirados, a fazer estrelas na areia sem nunca olhar para cima, sem tempo de olhar ou contemplar o que denominam a estrela de verdade. Éramos bichos de férias, mas bichos sem o sanguinolento desejo de caça.
Talvez houvesse a caça se ali vivêssemos, se ali nos
formássemos homens, e enfim, esquecidos das tristezas de antes, e como se dali
sempre fôssemos, morrêssemos.
Naquele verão, ao cabo de uma semana, nenhuma chuvinha ainda havia caído.
Naquele verão, ao cabo de uma semana, nenhuma chuvinha ainda havia caído.
Era sol de manhã, sol tórrido a tarde, rumo à uma
noite mormenta e desesperançada de água, e de nossos corpos bronzeados, só a
luminosidade dos olhos e as palmas alegres de nossas mãos.
Minha mãe sabe Deus porque, passou a rezar o terço
(que levara!) depois das seis da tarde pedindo chuva. Reunia os filhos pretos,
antes brancos. Indagava: Vamos ficar vinte dias aqui, como vamos suportar sem
chuva? Ríamos.
Ríamos muito dela, mas rezávamos, embora sem nenhuma
convicção, balbuciando as palavras santas, enquanto esticávamos em nome de
diversão, nossos beiços pretos uns para os outros às costas também negras e
aflitas de nossa mãe.
Dez dias depois da nossa chegada, Deus parecera se
cansar também daquele verão sem água.
Decretou uma trégua.
A serra amarrou sua cara e a pretidão (não dos nossos
corpos) dos recortes começou a ganhar um corpo.
Porém, no fim, um vento mais vigoroso levava tudo para
longe, - São Paulo?
Minha mãe olhava para o nada, São Paulo? A praia
fervia, noite e dia.
Até que uma manhã, antes que saíssemos da casa para a
obrigação de mar, da curtição sem químicas da pele, das proteções enganosas da
barraca pequena, das várias incursões na matinha ao lado atrás de baratas da
praia, dos cheiros de peixe frito, todos nós, engolindo prazer, de súbito, o
vento que antes soprava para longe a frescura da chuva, foi finalmente vencido.
Choveu.
Choveu às pampas.
Esfriou primeiramente o pavimento irregular das ruas,
as folhas ressequidas das palmeiras, lavou os telhados de modo que ficaram
novos e brilhosos, lavou os toldos, as placas, encharcou nossas toalhas e
roupas de banho no varal, antes tão horizontalmente ríspido, e deixou a areia
da praia, fina como uma paçoca quente, uma maçaroca que algemava nossos pés,
mas soltava de seus poros, os caranguejinhos rosados.
Minha mãe exultava-se em alegrias e orações.
Nós não sabíamos o que sentir.
Tínhamos o sal enfiado dentro da mais remota célula,
por dez dias, esse era o hábito de areia e ondas, o nosso trabalho, a devoção,
o nosso ensinamento.
Choveu por mais três dias. Ininterruptamente.
De vez em quando, armados de guarda sol aberto em punho, íamos ver o mar.
Estava lindo e silente. Nem ondas histéricas e
vigorosas, mas uma plenitude de sapiência e dever que nem de longe
entenderíamos.
Enchia-se e alagava-se, como uma panela cheia de caldo
grosso, caldo bom.
Voltamos um pouco antes para casa, decidiram assim.
“Praia com chuva é um porre.”
Mas os dias de sol a pino não se sobrepuseram aos dias de chuva grossa na minha lembrança de criança.
A visão da água densa e satisfeita após tantos dias de
uma aflição repetida de ondas, ruidosa e insatisfeita, deu-me uma alegria
pequena, mas consistente.
Foi um verão meio a meio, muitos
de nós reclamaram; mas para mim, o contraste que vivi trouxe-me esta primeira
lição.
Um dia assim, no outro dia assim,
um dia de um jeito, no outro, de outro jeito.
A perfeição do contraste da vida; uma lição que depois de tanto viver e tantos verões após, ainda aprendo.
A perfeição do contraste da vida; uma lição que depois de tanto viver e tantos verões após, ainda aprendo.
Cecília Figueiredo
15 de janeiro de 2016
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